A Data Privacy Brasil é uma organização que nasce da parceria entre uma escola e uma associação de pesquisa com o objetivo de fomentar a cultura de proteção de dados e direitos digitais no Brasil e no mundo. Para alcançar esse propósito, contamos com o suporte de uma equipe multidisciplinar e oferecemos formações, eventos, certificações, consultorias, conteúdos multimídia, pesquisas de interesse público e auditorias cívicas. Estas iniciativas visam a promover direitos fundamentais e valores ligados à justiça social diante das tecnologias contemporâneas e processos de datificação. Por meio da educação, da sensibilização e da mobilização da sociedade, buscamos uma sociedade democrática na qual as tecnologias estejam a serviço da autonomia, dignidade das pessoas e redução de assimetrias de poder.



O projeto “IA na sala de aula: modelos de participação para a comunidade escolar” é uma de nossas iniciativas. Conduzido ao longo de 2023, seu objetivo é propor modelos para a participação e a escuta de estudantes em discussões e processos de escolha sobre o uso de tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem, sobretudo das que empregam inteligência artificial, no contexto da educação básica.



Acreditamos que ouvir as vozes de crianças e adolescentes, e somá-las às vozes de professores e de toda a comunidade escolar, é reconhecer essas pessoas enquanto sujeitos de direitos e como os principais afetados pelos benefícios e riscos dessas tecnologias. É também promover sua cidadania em tempos de crescente digitalização da educação, de forma alinhada ao Comentário Geral 25 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, sobre os direitos das pessoas com menos de 18 anos em relação ao ambiente digital, e à gestão escolar democrática, pilar da educação brasileira.

Cartilha

Esta cartilha tem a proposta de discutir os processos por meio dos quais são tomadas essas duas decisões, para sugerir como crianças e adolescentes podem passar a integrá-las:

(1) de quando introduzir uma tecnologia no contexto da educação básica e para quais fins;

(2) de qual o produto ou serviço que melhor atende às necessidades daquela comunidade escolar e, portanto, será o utilizado.

Este material, então, é especialmente direcionado àqueles que tomam decisões sobre o uso de tecnologias para o ensino-aprendizagem: gestores públicos da área de educação, gestores escolares e professores do ensino básico. No entanto, buscamos também com este recurso incentivar debates e dialogar com todas e todos que se interessam pela intersecção entre tecnologias e educação, pela proposta de gestão escolar democrática e pelo direito de crianças e adolescentes de serem ouvidos.

Aqui iremos destacar os motivos pelos quais compreendemos que dar voz a crianças e adolescentes é fundamental para construir uma sociedade mais justa e uma educação verdadeiramente participativa. E, partindo disso, iremos apresentar diretrizes gerais e modelos concretos para consultá-los e ponderar suas opiniões com outros fatores que devem ser considerados na tomada de decisões sobre a introdução de tecnologias no ensino-aprendizado, como questões pedagógicas, orçamentárias e das próprias configurações dos produtos e serviços (como suas práticas em relação à proteção de dados).

Por fim, ressaltamos que os caminhos delineados nesta cartilha devem ser considerados como parte de um conjunto de possibilidades, cuja eficácia poderá ser maximizada quando adaptados às realidades específicas de cada ambiente educacional. Muitas das reflexões principais são resultados da nossa pesquisa de campo. Portanto, este material não deve ser considerado como uma solução universal, mas sim como um guia cujo propósito é fornecer modelos de participação para a comunidade escolar.

Para elaborar esta cartilha, nós da equipe do projeto "IA na Sala de Aula", da Data Privacy Brasil, realizamos uma revisão bibliográfica que explorou a intersecção entre os campos da educação e das novas tecnologias. Além disso, dialogamos com especialistas nessas áreas e estabelecemos uma parceria estratégica com o Núcleo de Tecnologia Educacional Municipal (NTEM), vinculado à Secretaria de Educação do município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Viajamos até o sul do país e em nossas atividades por lá contamos com a participação de mais de 40 estudantes do Ensino Fundamental II, 30 professores de informática e gestores públicos vinculados ao NTEM:

Promovemos formações sobre o uso crítico de tecnologias e proteção de dados pessoais, direcionadas tanto aos estudantes, quanto aos professores, com níveis de detalhamento ajustados a cada um desses grupos;

Conduzimos grupos focais com os estudantes, que tinham entre 10 e 15 anos de idade e cursavam do 5º ao 8º ano em escolas municipais urbanas e rurais. Nos grupos focais, buscamos colher suas percepções sobre seu interesse em serem ouvidos e sobre os modelos por meio dos quais sentem que poderiam contribuir com os debates sobre o uso de tecnologias na educação;

Entrevistamos gestoras públicas ligadas à área de educação de Santa Maria, para compreender os processos de escolha de tecnologias para o ensino-aprendizagem, do ponto de vista da gestão pública.

As sugestões apresentadas neste material foram cuidadosamente elaboradas a partir das vozes dos estudantes, professores e gestoras vinculados ao Núcleo de Tecnologia Educacional Municipal de Santa Maria, somadas a nosso processo de pesquisa e à experiência da Data Privacy Brasil em estudos sobre infância e tecnologias.

O crescente uso de tecnologias e recursos digitais em contextos de ensino-aprendizagem



Plataformas educacionais online, recursos digitais interativos e o compartilhamento de conteúdos em nuvem, entre outras tecnologias, têm transformado a prática educacional. O acesso instantâneo a uma vasta quantidade de informações é possibilitado pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs)empregadas no contexto educacional para coletar, armazenar, processar, transmitir e disseminar informações.

O emprego dessas ferramentas tem aumentado de maneira bastante significativa no Brasil e a pandemia de Covid-19 foi um marco de aceleração ainda maior a esse crescimento. Diante da necessidade de criação de espaços virtuais e a adaptação ao ensino remoto durante a crise sanitária, as TICs assumiram um papel ainda mais central. A pesquisa conduzida pelo Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nas escolas brasileiras revelou que, antes da pandemia de Covid-19, apenas 21% das escolas no Brasil ofereciam atividades de ensino à distância. Esse número aumentou para 56% em 2021.

Recursos que vão de slides a jogos virtuais, passando por softwares para recomendação de tarefas personalizadas, por um lado, podem trazer benefícios aos estudantes, engajando-os de forma diferenciada e preparando-os para viver em um mundo cada vez mais digitalizado.

Por outro lado, é importante refletir também sobre os riscos envolvidos no emprego dessas tecnologias, nem sempre visíveis a olho nu. Entre eles, por exemplo, está o fato de que grande parte dessas tecnologias funciona a partir da coleta massiva de dados dos estudantes para traçar seus hábitos e interesses e, então, direcionar publicidade personalizada a eles. Em outras palavras, um número significativo de tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem se desviam dessa função e se tornam um meio para a exploração comercial de crianças e adolescentes.

As disparidades no acesso a dispositivos e conectividade entre os estudantes, aliadas ao baixo letramento digital, também são fatores que precisam ser considerados. Conforme revelado pela pesquisa conduzida pelo Idec e Instituto A Locomotiva, entre os segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira, 28% das pessoas entrevistadas não puderam receber assistência social, como o auxílio emergencial implementado durante a crise sanitária, devido à falta de acesso à conectividade. Adicionalmente, 35% relataram que eles próprios ou seus filhos deixaram de frequentar aulas ou cursos devido à ausência de internet móvel.

Compreendendo o potencial do uso de tecnologias no ensino-aprendizagem, mas sem pregar o discurso tecnosolucionista da inevitabilidade do seu uso como única forma de progresso, é crucial também reconhecer seus riscos. Portanto, acreditamos ser fundamental pensar o processo de introdução de recursos tecnológicos na sala de aula de forma cuidadosa, crítica e, sobretudo, participativa.

Crianças e adolescentes são pessoas que se encontram no que chamamos de fase peculiar de desenvolvimento, e esse desenvolvimento é, ao mesmo tempo, físico, cognitivo, psicológico, social e emocional.

Considerando esse desenvolvimento que os mais jovens atravessam, nossa Constituição Federal estabeleceu que crianças e adolescentes são detentores de proteção integral, com prioridade absoluta. Isso significa que crianças e adolescentes são titulares de todos os direitos humanos existentes, como quaisquer outros indivíduos, e, além disso, possuem direitos específicos e adicionais, decorrentes da sua fase de desenvolvimento. Quer dizer, ainda, que todos esses direitos devem ser garantidos com máxima prioridade, devendo prevalecer em relação a quaisquer outros interesses, e que cabe à família, ao Estado e a toda a sociedade o dever de protegê-los e promovê-los.

Essa proteção deve também considerar a autonomia progressiva de crianças e adolescentes, ou seja, o desenvolvimento progressivo das suas capacidades, conforme seu crescimento. Entendemos, assim, que deve ser incentivada a autonomia gradual dos mais jovens, e que os processos de reconhecimento e escuta de suas vozes, demandas e opiniões (ou, em outras palavras, o exercício do seu direito a serem ouvidos), deve considerar e se ajustar à sua faixa etária e estágio de desenvolvimento.

O direito de crianças e adolescentes a serem ouvidos foi, inicialmente, estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, de 1989 e, posteriormente, reforçado no Comentário Geral nº 25 do Comitê dos Direitos da Criança (também da ONU), o qual destaca os direitos das pessoas com menos de 18 anos em relação ao ambiente digital. É importante mencionar que na própria elaboração desse Comentário Geral, mais de 700 jovens de 28 países diferentes foram ouvidos e tiveram suas percepções consideradas. Além disso, foi produzida uma versão do documento final voltada para crianças, de forma que elas possam efetivamente compreender os seus direitos.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) segue um caminho semelhante. Além de garantir que os dados pessoais de crianças e adolescentes sejam sempre tratados a partir do melhor interesse desses sujeitos, a lei também estabelece no seu artigo 14, § 6º, o dever de que as informações sobre como esses dados serão utilizados seja clara e acessível aos mais jovens, consideradas suas “características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais”.

Isso porque incluir crianças e adolescentes nas discussões sobre tecnologias é uma forma de promover sua autonomia e seu letramento digital, e de prepará-los para serem cidadãos ativos e críticos num mundo cada vez mais digitalizado e orientado por dados.

Não é à toa que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece como um dos seus princípios a gestão democrática do ensino. Esse conceito é pautado essencialmente por três pilares: participação, transparência e autonomia. Eles possibilitam o fomento de ações coordenadas que permitem a participação de toda a comunidade escolar (professores, estudantes, famílias, direção, equipe pedagógica e demais funcionários) nas decisões do ambiente estudantil, por meio do exercício da cidadania.

A escuta da comunidade escolar é, portanto, um dos fatores centrais para uma gestão democrática efetiva, e para sua concretização devem ser fomentados espaços de escuta e ações de acompanhamento e mapeamento de anseios e necessidades. Isso pode ser feito, por exemplo, com a criação e manutenção de Conselhos Escolares, Grêmios Estudantis, Associações de Pais e Mestres e escolha de representantes de classes.

Benefícios do reconhecimento das vozes de crianças e adolescente



A adoção de tecnologias para a educação normalmente não envolve a comunidade escolar. O processo de adoção de recursos educacionais hoje é reconhecidamente firmado entre as grandes empresas e as secretarias de educação. Não diferente, quando a pandemia eclodiu, escolas de todo país adotaram soluções gratuitas. Neste cenário, unidades escolares, professores e estudantes, via de regra, não foram envolvidos nos debates que decidiram quais eram as tecnologias mais adequadas a serem utilizadas.

Duas problemáticas derivam deste cenário: a primeira, que essas tidas soluções educacionais não chegam a todos os alunos adequadamente. Muitos alunos não conseguiram continuar estudando durante a pandemia simplesmente por falta de acesso à dispositivos e conexão adequada à internet. A segunda, como sublinha a UNICEF no seu recente guia de orientação para IA e crianças,em geral tecnologias de IA não são concebidas tendo em mente crianças e os efeitos destas tecnologias sobre elas ainda são desconhecidos.

Criar espaços e oportunidades de escuta significativa e reconhecimento das vozes de estudantes nas escolhas de tecnologias para o ensino-aprendizagem traz benefícios a todos os atores envolvidos: os próprios estudantes, professores, gestores escolares, gestores públicos da área da educação, e também aos desenvolvedores das tecnologias.

Aqui destacamos aqueles que consideramos ser os principais desses benefícios:

Potencial pedagógico
Proporcionar um ambiente seguro para que os estudantes expressem suas percepções, as secretarias de educação, escolas e professores não apenas demonstram respeito pelo papel dos mais jovens como protagonistas no processo de aprendizagem, como também garantem que as ferramentas e recursos tecnológicos atendam às suas necessidades e preferências, aprimorando, assim, seu engajamento com os recursos e a qualidade da educação.

Autonomia e pertencimento
Durante nossa interação direta com crianças e adolescentes por meio de pesquisa, notamos que sua participação nas escolhas das tecnologias educacionais também fomenta um sentimento de pertencimento e responsabilidade no ambiente de ensino. Quando questionados sobre a importância de serem ouvidos para a escolha de recursos tecnológicos, as respostas foram unânimes: gostariam muito de terem suas vozes reconhecidas. . Ao compartilharem suas opiniões, os estudantes podem oferecer percepções sobre suas preferências. Processos de consulta também servem para estabelecer laços de confiança entre crianças e adolescentes e adultos responsáveis. Através desses laços, são estabelecidos canais de comunicação para que estudantes possam relatar suas dificuldades e pedir apoio diante de situações de riscos associados às tecnologias, como cyberbullying, golpes online e disseminação não consentida de imagens íntimas, por exemplo.

Diversidade e inclusão
Incluir os estudantes no processo de escolha de tecnologias para o ensino-aprendizagem não apenas melhora a qualidade da educação, mas também permite que as instituições de ensino selecionem e implementem tecnologias que promovam a diversidade e a inclusão. Isso inclui as adequações necessárias para atender às necessidades de crianças e adolescentes neurodivergentes ou que demandem acompanhamento especializado. Dessa forma, todos terão a oportunidade de se beneficiar plenamente das ferramentas disponíveis.

Prestação de contas e tecnologias mais protetivas
Ao terem suas vozes reconhecidas nos processos de escolha de tecnologias, não só os estudantes, como toda a comunidade escolar passa a ter maior consciência das tecnologias disponíveis e de como elas podem ser utilizadas. Isso possibilita a construção de um senso coletivo de participação no uso da tecnologia, o que pode levar a questionamentos mais profundos sobre suas funcionalidades e até sobre os riscos envolvidos, como bugs no sistema ou possíveis violações à proteção de dados pessoais. Esses questionamentos ajudam o ecossistema de tecnologias a evoluir de maneira ampla. Quer dizer, faz com que as escolhas de tecnologias sejam progressivamente refinadas, com a construção coletiva de critérios que podem ir além do fator pedagógico-educacional. Como resultado, ao ter uma comunidade escolar engajada, os desenvolvedores de tecnologias precisarão prestar contas de maneira periódica sobre seu potencial pedagógico, funcionamento, usabilidade e riscos de seus produtos. Isso os estimula a evoluir constantemente nesses aspectos para garantir a competitividade de mercado, tornando seus produtos mais adequados e protetivos para os mais jovens.

Otimização de recursos públicos
Atendendo às efetivas demandas dos estudantes e da comunidade escolar, através da escuta e reconhecimento das suas vozes, podem ser escolhidas tecnologias que realmente terão efetividade prática e poderão ser implementadas no cotidiano escolar. Isso auxilia na otimização de recursos públicos, evitando a criação de ‘galpões de recursos tecnológicos’, seja na forma física ou digital, com o dispêndio de recursos e acúmulo de tecnologias que não são devidamente aproveitadas.

Momentos e oportunidades para o reconhecimento de suas vozes em relação a tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem



Entendemos que o diálogo sobre tecnologias deve ser constantemente incentivado e promovido com toda a comunidade escolar, seja em sala de aula, por meio de sua inclusão no currículo escolar, seja em outros espaços, como em reuniões de pais e mestres e de grêmios estudantis.

Dito isso, diante do objetivo desta cartilha de propor diretrizes e modelos para o reconhecimento das vozes dos estudantes em debates sobre tecnologias e educação, visualizamos dois momentos centrais nos quais podem ser criados processos de escuta desses sujeitos:

Para a tomada de decisão sobre o contexto no qual serão implementadas tecnologias

Caso a tecnologia vá ser adquirida por um órgão público por meio de licitação, este momento seria equivalente àquele que antecede a elaboração do edital. Caso a tecnologia vá ser adquirida diretamente pela escola, estaríamos falando do momento de elaboração do projeto político-pedagógico. E, caso seja o professor aquele que irá pensar o uso de um recurso tecnológico, seria antes da elaboração de seu plano de ensino, ou plano de aula.

Aqui nos referimos a processos para a escuta de estudantes em relação a quais são os contextos nos quais eles acreditam que tecnologias seriam melhor aproveitadas no ensino-aprendizagem. Compreender esse contexto implica compreender, por exemplo, em quais disciplinas os estudantes gostariam de contar com o apoio de recursos tecnológicos, que tipo de recurso que os interessa (um jogo? Uma plataforma com vídeos pedagógicos? Tarefas de reforço da disciplina personalizadas?) e em quais espaços de ensino-aprendizagem entendem que essas tecnologias seriam melhor aproveitadas (em sala de aula? Em outros espaços escolares? Em suas casas?).

Ao realizar o mapeamento e consulta das necessidades dos estudantes no tocante às tecnologias, a partir dessa consideração crítica prévia, a elaboração dos requisitos, objetivos e funcionalidades das mesmas podem ser melhor especificadas em editais de contratação, planos político-pedagógicos e de ensino. Isso possibilita atrair possibilidades que estejam alinhadas com a realidade da comunidade escolar em questão.

Para a escolha de qual será o produto ou serviço específico a ser implementado Se estivermos lidando com a aquisição de tecnologia pelo setor público, este seria o momento posterior à apresentação de propostas em uma licitação ou convênio. Se a tecnologia for selecionada por uma unidade escolar ou diretamente pelo professor, o momento de escuta ao qual nos referimos acontece logo após a decisão sobre o contexto no qual a tecnologia será utilizada. Uma vez compreendido qual é o melhor contexto para a utilização de recursos tecnológicos no ensino-aprendizagem, consideradas as possibilidades disponíveis, cabe escolher concretamente qual será o produto ou serviço selecionado. Após fazer a listagem de produtos, serviços e fornecedores, adotando as diretrizes e modelos participativos aqui propostos, é possível realizar uma filtragem das propostas a partir das demandas e interesses dos estudantes. Nesta etapa, é interessante combinar as opções concretas disponíveis com os processos de escuta dos estudantes com análises ligadas à usabilidade das tecnologias e aos riscos associados a elas. Essas análises devem ser conduzidas por atores capacitados, que possam ponderar fatores pedagógicos, orçamentários e técnicos relacionados a cada opção disponível, favorecendo os recursos que ofereçam mais benefícios aos estudantes, como Recursos Educacionais Abertos.

Os métodos participativos propostos nesta cartilha, no momento anterior e posterior ao desenho da licitação, não podem resultar em definição de condições específicas de objeto de licitação, o que configura direcionamento de licitação, um ilícito administrativo. Métodos participativos devem buscar os princípios da impessoalidade, eficiência e finalidade pública

Diretrizes gerais para a inclusão de crianças e adolescentes nos debates sobre tecnologia na educação



As diretrizes gerais abaixo propostas servem para apoiar os processos de consulta e reconhecimento das vozes dos estudantes, independentemente do momento em que eles sejam realizados. Em outras palavras, tratam-se de guias gerais para se ter em mente ao estruturar modelos de escuta de crianças e adolescentes.

Fortalecimento da educação digital
Para que as consultas aos estudantes sejam realizadas de forma consistente e possam contar com opiniões cada vez mais robustas, é importante que a comunidade escolar reforce seu compromisso com o Plano de Nacional de Educação Digital, previsto na Lei nº 14.533/23, especialmente com o eixo de “Educação Digital”. Ao garantir o estímulo ao letramento digital, informacional e outras competências digitais, será fomentado um ecossistema de indivíduos empoderados no âmbito digital, o que não apenas poderá tornar as consultas mais consistentes, como também poderá apoiar os estudantes em seus cotidianos e em suas vidas a curto, médio e longo prazo. Vale destacar, ainda, que realizar consultas com os estudantes como proposto nesta cartilha pode ser um fator de estímulo à educação digital em seu contexto escolar, além de uma ação de fortalecimento dos pilares da gestão democrática de ensino.

Consideração do contexto local
É importante ter em mente as diversidades entre crianças e adolescentes ao redor de nosso país, atravessadas por diversos marcadores sociais como gênero, raça, classe e região. Os modelos propostos nesta cartilha, assim como todas as informações deste material, foram construídos com muito cuidado para apoiar gestores e professores na criação de processos de escuta, mas não são receitas prontas: as particularidades de cada local devem ser sempre adicionadas à equação. Nossa cartilha foi construída a partir da escuta e compreensão de indivíduos de escolas urbanas e rurais do município de Santa Maria (RS), o que significa que seu conteúdo apresenta sugestões que precisam ser adaptadas a cada realidade local.

Autonomia progressiva de crianças e adolescentes
Assim como a autonomia de crianças e adolescentes para o exercício de seus direitos e atos da vida em comunidade tende a ir crescendo conforme seu desenvolvimento, a expressão de suas opiniões sobre tecnologias para o ensino-aprendizagem também deve considerar e variar conforme sua faixa etária. Em outras palavras, a forma como são ouvidas e consideradas as opiniões de uma criança de 5 anos e um adolescente de 16 anos devem ser distintas - o que não significa que ouvir o mais velho seja mais importante! Mas o como e o quê perguntar, será diferente em cada caso.

Engajamento de toda a comunidade escolar
Os estudantes serão os principais usuários das tecnologias, mas elas não afetarão somente eles. Professores são e devem ser partes essenciais no processo de escolha e uso das tecnologias, ponderando seu encaixe com as propostas pedagógicas, o que buscamos deixar evidente nos modelos propostos na presente cartilha. Também é importante entender o ponto de vista dos gestores escolares, que têm uma visão de conjuntura geral mais ampla.
É interessante também que as famílias, como responsáveis pelos cuidados diários das crianças e adolescentes, sejam, ao menos, comunicadas durante todo o processo. Nosso material se debruça sobre como incluir as vozes de crianças e adolescentes, pois entendemos que essas vozes ainda são pouco reconhecidas - além de ser bastante desafiador envolvê-las. No entanto, isso não significa que as mesmas devam ser escutadas isoladamente. Esse fator foi, inclusive, reconhecido pelos próprios estudantes durante a pesquisa de campo, com a clara autopercepção de que, apesar de ser importante terem suas vozes reconhecidas, são pessoas em desenvolvimento, que precisam do auxílio de adultos, especialmente professores.

Ponderação com outros fatores Ainda que tenha grande importância, as vozes dos estudantes não são o único fator a ser considerado na compra ou na escolha de uma tecnologia. Esta cartilha não defende que o que eles dizem deve, necessariamente, ser acatado. Na realidade, o que está sendo proposto é que suas opiniões sejam reconhecidas e levadas em consideração para a tomada de decisões sobre tecnologias na educação, pois crianças e adolescentes tendem a ser excluídos de espaços deliberativos, ainda que sejam alguns dos principais afetados por essas escolhas. Desse modo, por um lado, é essencial que o processo promova uma escuta real e efetiva. Por outro, até considerando a importância do envolvimento de toda a comunidade escolar, outros fatores precisam ser considerados por sujeitos como professores e gestores, como o orçamento e o potencial pedagógico.

Modelos para a promoção da participação significativa de estudantes em debates sobre tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem



Antes de delinear os contornos dos modelos propostos para a promoção da escuta de estudantes, é importante destacar uma vez mais que eles se tratam de sugestões para inspirar e incentivar a participação de crianças e adolescentes em processos de tomada de decisão sobre as tecnologias de ensino-aprendizagem.

Cabe àqueles que forem estruturar esses processos de escuta se inspirar nos modelos propostos e adaptá-los à sua realidade local, aproveitando-se das estruturas, espaços e práticas já existentes em seus contextos. Para ilustrar com exemplos, um processo de consulta conduzido por uma secretaria estadual de educação não será igual a um processo estruturado por um professor. Da mesma forma, há escolas que possuem estudantes líderes de turma e outras em que cada turma possui um professor tutor, e é interessante que os modelos considerem e se adaptem a cada uma dessas particularidades.



Participação de professores
Recomendamos que todos os processos de escuta sejam acompanhados de, ao menos, um professor, ainda que a discussão seja sistematizada e encaminhada através dos mencionados “líder de turmas” e “monitores”. Além de entender a importância do papel do professor, esse cuidado serve para atender à preocupação de evitar sobrecargas ou constrangimentos aos estudantes. A promoção da escuta e reconhecimento das suas vozes deve ser um momento de autonomia e ganho de confiança que, apesar de envolver responsabilidades, deve ser fomentado a partir de um espaço seguro.

Participação de terceiros
Em nosso contato com estudantes, foi também bastante destacada a possibilidade de ser incluída a figura de um “terceiro” em processos de escuta. Esse “terceiro” poderia ser um especialista, pesquisador ou mesmo profissional da educação que tenha a tecnologia na sua trajetória e que, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, possa auxiliar na criação de um espaço de confiança para coleta das opiniões dos estudantes.

Saber escutar, efetivamente ouvir e ser um facilitador
Escutar sensivelmente implica receber o que o outro diz sem pré-julgamentos, promovendo uma troca mútua que fortalece a conexão interpessoal. Segundo Barbier (2002), o silêncio da escuta é essencial para captar significados latentes não expressos verbalmente. Ao conduzir grupos focais sobre a comunicação não verbal de crianças e adolescentes, é crucial entrelaçar observações com estratégias de abordagem flexíveis. A escuta sensível, conforme descrita por Barbier (1998, 2002), é uma ferramenta valiosa nesse processo de exploração e análise. Ao compartilhar percepções e interpretações temporais entre observadores e facilitadores, busca-se uma compreensão mais profunda dos sinais emitidos pelo grupo, seja verbal ou não verbal. A intenção não é encontrar respostas certas ou ideais, mas sim abrir espaço para escutar integralmente o outro, incluindo suas expressões corporais. Portanto, ser um facilitador eficaz requer saber escutar, ouvir com sensibilidade e adaptar-se às nuances da interação humana.

Formato presencial
Outra recomendação unânime entre os estudantes ouvidos foi a de que as consultas sejam realizadas de forma presencial, uma vez que os mesmos vivem em realidades diversas e nem sempre têm acesso à Internet. Não só, mas entendemos também que o engajamento presencial e a interação entre eles permite que suas opiniões sejam construídas de forma mais robusta. Dessa forma, recomendamos que a escuta dos estudantes, independente do momento em que seja realizada ou do modelo de acordo com o qual ela se desenvolva, seja realizada em formato presencial, em ambiente confortável, preferencialmente em locais familiares como a própria sala de aula.

Apresentação, em linguagem clara e acessível, dos objetivos da consulta
Todos os processos de escuta devem ser iniciados com uma etapa de apresentação de seus objetivos. É essencial que os estudantes entendam quais tipos de opiniões é esperado que eles expressem e quais perguntas espera-se que eles respondam: se os contextos nos quais gostariam de utilizar tecnologias ou se, entre determinadas possibilidades, qual o produto ou serviço que entendem mais adequado. A apresentação desse objetivo, vale destacar, deve ser feita de forma direta e compreensível aos estudantes, adaptadas ao seu desenvolvimento progressivo.

Modelos para inspiração

Modelos para inspiração

A | UNIFICADO

A partir de uma divisão por turmas ou séries, dependendo da estrutura da escola, seria organizado um encontro de estudantes e professores. O encontro teria duração, no mínimo, de um turno (manhã ou tarde), dividido em três etapas:

Apresentação dos objetivos da consulta

Escuta: etapa que busca coletar as sugestões e impressões dos estudantes em relação aos objetivos da consulta. Neste momento, seria escolhido um ou mais professores - de preferência professores ligados à tecnologia, como de informática - para mediar a discussão, coletar e sistematizar as impressões dos estudantes

Decisão: nesta fase, o resultado alcançado pode ser sistematizado pela pessoa que está mediando a discussão para, em seguida, ser levado ao agente decisório. A depender do caso concreto, pode ser realizada uma votação entre os estudantes, para que cheguem a uma proposta final coletiva, ou a multiplicidade de suas visões também pode ser considerada.

B | AGENTE PROTAGONISTA

Este modelo pode ser aplicado especialmente em escolas que já contam com a estrutura de estudantes “líderes de sala”, “representantes de turma”, “alunos monitores” ou lideranças similares. Neste modelo, a escuta dos estudantes é realizada em suas turmas e o “mediador” do debate seria o estudante “líder”, em um processo que seria dividido em três momentos:

Apresentação dos objetivos da consulta

Escuta: nesta fase, cada turma realizaria sua própria discussão. Os líderes de turma conduziram o debate, de forma a compreender a visão geral do grupo e os principais pontos levantados na discussão, ainda que não seja alcançado um consenso. Importante destacar que apesar de a figura central da discussão ser o líder de turma, o que estimula a autonomia e amadurecimento, é recomendável ter um professor ou um terceiro acompanhando a discussão.

Decisão: em seguida, após o debate entre cada turma, os líderes figurariam como representantes das vozes dos estudantes, em uma segunda rodada de discussão, dessa vez com um conselho de professores ou gestores. Neste momento, os líderes de turma, com o apoio do professor que os auxiliou, podem fornecer os insumos coletados para o conselho que, seguindo as outras diretrizes apontadas ao longo da cartilha, tomaria a decisão final.

C | ESTUDANTE PARTÍCIPE

Este modelo pode ser aplicado especialmente em escolas que já contam com a estrutura de um “professor conselheiro”, ou seja, de docente que possua a função de compreender e apoiar determinada turma na resolução de suas demandas. Este modelo seria dividido em três etapas:

Apresentação dos objetivos da consulta

Escuta: O professor conselheiro faria a discussão com os estudantes na turma em questão, entendendo as escolhas e demandas daquele grupo, para figurar como uma espécie de “mensageiro” para os outros professores.

Decisão: Depois de conduzidas as discussões necessárias e compreendidas as opiniões (unânimes ou não) dos estudantes, os professores-conselheiros se reuniriam para deliberar sobre o que foi discutido em cada turma. Em seguida, levariam ao agente decisório em relação às tecnologias, de forma reunida, as percepções dos mais jovens.

Métodos participativos e o direito de ser ouvido

Proteção de Dados Pessoais de crianças e adolescentes e Edtechs

REA: Recursos Educacionais Abertos

Para se aprofundar: conteúdos complementares para entender melhor alguns temas tratados nesta cartilha

Glossário

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