A Data Privacy Brasil é uma organização que nasce da parceria entre uma escola e uma associação de pesquisa com o objetivo de fomentar a cultura de proteção de dados e direitos digitais no Brasil e no mundo. Para alcançar esse propósito, contamos com o suporte de uma equipe multidisciplinar e oferecemos formações, eventos, certificações, consultorias, conteúdos multimídia, pesquisas de interesse público e auditorias cívicas. Estas iniciativas visam a promover direitos fundamentais e valores ligados à justiça social diante das tecnologias contemporâneas e processos de datificação. Por meio da educação, da sensibilização e da mobilização da sociedade, buscamos uma sociedade democrática na qual as tecnologias estejam a serviço da autonomia, dignidade das pessoas e redução de assimetrias de poder.
O projeto “IA na sala de aula: modelos de participação para a comunidade escolar” é uma de nossas iniciativas. Conduzido ao longo de 2023, seu objetivo é propor modelos para a participação e a escuta de estudantes em discussões e processos de escolha sobre o uso de tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem, sobretudo das que empregam inteligência artificial, no contexto da educação básica.
Acreditamos que ouvir as vozes de crianças e adolescentes, e somá-las às vozes de professores e de toda a comunidade escolar, é reconhecer essas pessoas enquanto sujeitos de direitos e como os principais afetados pelos benefícios e riscos dessas tecnologias. É também promover sua cidadania em tempos de crescente digitalização da educação, de forma alinhada ao Comentário Geral 25 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, sobre os direitos das pessoas com menos de 18 anos em relação ao ambiente digital, e à gestão escolar democrática, pilar da educação brasileira.
Esta cartilha tem a proposta de discutir os processos por meio dos quais são tomadas essas duas decisões, para sugerir como crianças e adolescentes podem passar a integrá-las:
(1) de quando introduzir uma tecnologia no contexto da educação básica e para quais fins;
(2) de qual o produto ou serviço que melhor atende às necessidades daquela comunidade escolar e, portanto, será o utilizado.
Este material, então, é especialmente direcionado àqueles que tomam decisões sobre o uso de tecnologias para o ensino-aprendizagem: gestores públicos da área de educação, gestores escolares e professores do ensino básico. No entanto, buscamos também com este recurso incentivar debates e dialogar com todas e todos que se interessam pela intersecção entre tecnologias e educação, pela proposta de gestão escolar democrática e pelo direito de crianças e adolescentes de serem ouvidos.
Aqui iremos destacar os motivos pelos quais compreendemos que dar voz a crianças e adolescentes é fundamental para construir uma sociedade mais justa e uma educação verdadeiramente participativa. E, partindo disso, iremos apresentar diretrizes gerais e modelos concretos para consultá-los e ponderar suas opiniões com outros fatores que devem ser considerados na tomada de decisões sobre a introdução de tecnologias no ensino-aprendizado, como questões pedagógicas, orçamentárias e das próprias configurações dos produtos e serviços (como suas práticas em relação à proteção de dados).
Por fim, ressaltamos que os caminhos delineados nesta cartilha devem ser considerados como parte de um conjunto de possibilidades, cuja eficácia poderá ser maximizada quando adaptados às realidades específicas de cada ambiente educacional. Muitas das reflexões principais são resultados da nossa pesquisa de campo. Portanto, este material não deve ser considerado como uma solução universal, mas sim como um guia cujo propósito é fornecer modelos de participação para a comunidade escolar.
Para elaborar esta cartilha, nós da equipe do projeto "IA na Sala de Aula", da Data Privacy Brasil, realizamos uma revisão bibliográfica que explorou a intersecção entre os campos da educação e das novas tecnologias. Além disso, dialogamos com especialistas nessas áreas e estabelecemos uma parceria estratégica com o Núcleo de Tecnologia Educacional Municipal (NTEM), vinculado à Secretaria de Educação do município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
Viajamos até o sul do país e em nossas atividades por lá contamos com a participação de mais de 40 estudantes do Ensino Fundamental II, 30 professores de informática e gestores públicos vinculados ao NTEM:
Promovemos formações sobre o uso crítico de tecnologias e proteção de dados pessoais, direcionadas tanto aos estudantes, quanto aos professores, com níveis de detalhamento ajustados a cada um desses grupos;
Conduzimos grupos focais com os estudantes, que tinham entre 10 e 15 anos de idade e cursavam do 5º ao 8º ano em escolas municipais urbanas e rurais. Nos grupos focais, buscamos colher suas percepções sobre seu interesse em serem ouvidos e sobre os modelos por meio dos quais sentem que poderiam contribuir com os debates sobre o uso de tecnologias na educação;
Entrevistamos gestoras públicas ligadas à área de educação de Santa Maria, para compreender os processos de escolha de tecnologias para o ensino-aprendizagem, do ponto de vista da gestão pública.
As sugestões apresentadas neste material foram cuidadosamente elaboradas a partir das vozes dos estudantes, professores e gestoras vinculados ao Núcleo de Tecnologia Educacional Municipal de Santa Maria, somadas a nosso processo de pesquisa e à experiência da Data Privacy Brasil em estudos sobre infância e tecnologias.
O crescente uso de tecnologias e recursos digitais em contextos de ensino-aprendizagem
Crianças e adolescentes são pessoas que se encontram no que chamamos de fase peculiar de desenvolvimento, e esse desenvolvimento é, ao mesmo tempo, físico, cognitivo, psicológico, social e emocional.
Considerando esse desenvolvimento que os mais jovens atravessam, nossa Constituição Federal estabeleceu que crianças e adolescentes são detentores de proteção integral, com prioridade absoluta. Isso significa que crianças e adolescentes são titulares de todos os direitos humanos existentes, como quaisquer outros indivíduos, e, além disso, possuem direitos específicos e adicionais, decorrentes da sua fase de desenvolvimento. Quer dizer, ainda, que todos esses direitos devem ser garantidos com máxima prioridade, devendo prevalecer em relação a quaisquer outros interesses, e que cabe à família, ao Estado e a toda a sociedade o dever de protegê-los e promovê-los.
Essa proteção deve também considerar a autonomia progressiva de crianças e adolescentes, ou seja, o desenvolvimento progressivo das suas capacidades, conforme seu crescimento. Entendemos, assim, que deve ser incentivada a autonomia gradual dos mais jovens, e que os processos de reconhecimento e escuta de suas vozes, demandas e opiniões (ou, em outras palavras, o exercício do seu direito a serem ouvidos), deve considerar e se ajustar à sua faixa etária e estágio de desenvolvimento.
O direito de crianças e adolescentes a serem ouvidos foi, inicialmente, estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, de 1989 e, posteriormente, reforçado no Comentário Geral nº 25 do Comitê dos Direitos da Criança (também da ONU), o qual destaca os direitos das pessoas com menos de 18 anos em relação ao ambiente digital. É importante mencionar que na própria elaboração desse Comentário Geral, mais de 700 jovens de 28 países diferentes foram ouvidos e tiveram suas percepções consideradas. Além disso, foi produzida uma versão do documento final voltada para crianças, de forma que elas possam efetivamente compreender os seus direitos.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) segue um caminho semelhante. Além de garantir que os dados pessoais de crianças e adolescentes sejam sempre tratados a partir do melhor interesse desses sujeitos, a lei também estabelece no seu artigo 14, § 6º, o dever de que as informações sobre como esses dados serão utilizados seja clara e acessível aos mais jovens, consideradas suas “características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais”.
Isso porque incluir crianças e adolescentes nas discussões sobre tecnologias é uma forma de promover sua autonomia e seu letramento digital, e de prepará-los para serem cidadãos ativos e críticos num mundo cada vez mais digitalizado e orientado por dados.
Não é à toa que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece como um dos seus princípios a gestão democrática do ensino. Esse conceito é pautado essencialmente por três pilares: participação, transparência e autonomia. Eles possibilitam o fomento de ações coordenadas que permitem a participação de toda a comunidade escolar (professores, estudantes, famílias, direção, equipe pedagógica e demais funcionários) nas decisões do ambiente estudantil, por meio do exercício da cidadania.
A escuta da comunidade escolar é, portanto, um dos fatores centrais para uma gestão democrática efetiva, e para sua concretização devem ser fomentados espaços de escuta e ações de acompanhamento e mapeamento de anseios e necessidades. Isso pode ser feito, por exemplo, com a criação e manutenção de Conselhos Escolares, Grêmios Estudantis, Associações de Pais e Mestres e escolha de representantes de classes.
Benefícios do reconhecimento das vozes de crianças e adolescente
Momentos e oportunidades para o reconhecimento de suas vozes em relação a tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem
Diretrizes gerais para a inclusão de crianças e adolescentes nos debates sobre tecnologia na educação
Modelos para a promoção da participação significativa de estudantes em debates sobre tecnologias voltadas ao ensino-aprendizagem
Participação de professores
Recomendamos que todos os processos de escuta sejam acompanhados de, ao menos, um professor, ainda que a discussão seja sistematizada e encaminhada através dos mencionados “líder de turmas” e “monitores”. Além de entender a importância do papel do professor, esse cuidado serve para atender à preocupação de evitar sobrecargas ou constrangimentos aos estudantes. A promoção da escuta e reconhecimento das suas vozes deve ser um momento de autonomia e ganho de confiança que, apesar de envolver responsabilidades, deve ser fomentado a partir de um espaço seguro.
Participação de terceiros
Em nosso contato com estudantes, foi também bastante destacada a possibilidade de ser incluída a figura de um “terceiro” em processos de escuta. Esse “terceiro” poderia ser um especialista, pesquisador ou mesmo profissional da educação que tenha a tecnologia na sua trajetória e que, a partir de uma perspectiva multidisciplinar, possa auxiliar na criação de um espaço de confiança para coleta das opiniões dos estudantes.
Saber escutar, efetivamente ouvir e ser um facilitador
Escutar sensivelmente implica receber o que o outro diz sem pré-julgamentos, promovendo uma troca mútua que fortalece a conexão interpessoal. Segundo Barbier (2002), o silêncio da escuta é essencial para captar significados latentes não expressos verbalmente. Ao conduzir grupos focais sobre a comunicação não verbal de crianças e adolescentes, é crucial entrelaçar observações com estratégias de abordagem flexíveis. A escuta sensível, conforme descrita por Barbier (1998, 2002), é uma ferramenta valiosa nesse processo de exploração e análise. Ao compartilhar percepções e interpretações temporais entre observadores e facilitadores, busca-se uma compreensão mais profunda dos sinais emitidos pelo grupo, seja verbal ou não verbal. A intenção não é encontrar respostas certas ou ideais, mas sim abrir espaço para escutar integralmente o outro, incluindo suas expressões corporais. Portanto, ser um facilitador eficaz requer saber escutar, ouvir com sensibilidade e adaptar-se às nuances da interação humana.
Formato presencial
Outra recomendação unânime entre os estudantes ouvidos foi a de que as consultas sejam realizadas de forma presencial, uma vez que os mesmos vivem em realidades diversas e nem sempre têm acesso à Internet. Não só, mas entendemos também que o engajamento presencial e a interação entre eles permite que suas opiniões sejam construídas de forma mais robusta. Dessa forma, recomendamos que a escuta dos estudantes, independente do momento em que seja realizada ou do modelo de acordo com o qual ela se desenvolva, seja realizada em formato presencial, em ambiente confortável, preferencialmente em locais familiares como a própria sala de aula.
Apresentação, em linguagem clara e acessível, dos objetivos da consulta
Todos os processos de escuta devem ser iniciados com uma etapa de apresentação de seus objetivos. É essencial que os estudantes entendam quais tipos de opiniões é esperado que eles expressem e quais perguntas espera-se que eles respondam: se os contextos nos quais gostariam de utilizar tecnologias ou se, entre determinadas possibilidades, qual o produto ou serviço que entendem mais adequado. A apresentação desse objetivo, vale destacar, deve ser feita de forma direta e compreensível aos estudantes, adaptadas ao seu desenvolvimento progressivo.
Modelos para inspiração
A partir de uma divisão por turmas ou séries, dependendo da estrutura da escola, seria organizado um encontro de estudantes e professores. O encontro teria duração, no mínimo, de um turno (manhã ou tarde), dividido em três etapas:
Apresentação dos objetivos da consulta
Escuta: etapa que busca coletar as sugestões e impressões dos estudantes em relação aos objetivos da consulta. Neste momento, seria escolhido um ou mais professores - de preferência professores ligados à tecnologia, como de informática - para mediar a discussão, coletar e sistematizar as impressões dos estudantes
Decisão: nesta fase, o resultado alcançado pode ser sistematizado pela pessoa que está mediando a discussão para, em seguida, ser levado ao agente decisório. A depender do caso concreto, pode ser realizada uma votação entre os estudantes, para que cheguem a uma proposta final coletiva, ou a multiplicidade de suas visões também pode ser considerada.
Este modelo pode ser aplicado especialmente em escolas que já contam com a estrutura de estudantes “líderes de sala”, “representantes de turma”, “alunos monitores” ou lideranças similares. Neste modelo, a escuta dos estudantes é realizada em suas turmas e o “mediador” do debate seria o estudante “líder”, em um processo que seria dividido em três momentos:
Apresentação dos objetivos da consulta
Escuta: nesta fase, cada turma realizaria sua própria discussão. Os líderes de turma conduziram o debate, de forma a compreender a visão geral do grupo e os principais pontos levantados na discussão, ainda que não seja alcançado um consenso. Importante destacar que apesar de a figura central da discussão ser o líder de turma, o que estimula a autonomia e amadurecimento, é recomendável ter um professor ou um terceiro acompanhando a discussão.
Decisão: em seguida, após o debate entre cada turma, os líderes figurariam como representantes das vozes dos estudantes, em uma segunda rodada de discussão, dessa vez com um conselho de professores ou gestores. Neste momento, os líderes de turma, com o apoio do professor que os auxiliou, podem fornecer os insumos coletados para o conselho que, seguindo as outras diretrizes apontadas ao longo da cartilha, tomaria a decisão final.
Este modelo pode ser aplicado especialmente em escolas que já contam com a estrutura de um “professor conselheiro”, ou seja, de docente que possua a função de compreender e apoiar determinada turma na resolução de suas demandas. Este modelo seria dividido em três etapas:
Apresentação dos objetivos da consulta
Escuta: O professor conselheiro faria a discussão com os estudantes na turma em questão, entendendo as escolhas e demandas daquele grupo, para figurar como uma espécie de “mensageiro” para os outros professores.
Decisão: Depois de conduzidas as discussões necessárias e compreendidas as opiniões (unânimes ou não) dos estudantes, os professores-conselheiros se reuniriam para deliberar sobre o que foi discutido em cada turma. Em seguida, levariam ao agente decisório em relação às tecnologias, de forma reunida, as percepções dos mais jovens.
Para se aprofundar: conteúdos complementares para entender melhor alguns temas tratados nesta cartilha